FARO, A CIDADE DAS PEDRAS FALANTES
Ali, na cidade velha, há uma história viva e imprecisa de um tempo presente. Em cada esquina, fantasmas de um imaginário fabricado por livros e filmes surgem-nos nas brisas, na cal desmaiada dos muros, nos recortes de luz e no cheiro mágico das árvores serenamente vigilantes.
Há um certo imperialismo d tempo, ali, na cidade velha. Também uma certa bonomia, tal como existe em tudo quanto parece ter perdido a idade. O que se procura quando se fotografa a cidade velha? Nunca soube, e talvez por isso, um fascínio intraduzível me obrigue a regressar continuamente ao que ainda está por ver. É como se tudo fosse outra coisa para além da História. Ou como se a História estivesse toda por preencher, por ganhar uma outra vida humana, um outro movimento, um outro cheiro. Ali, tudo diz e seduz uma câmara: que é como quem diz: um olhar, uma alma, um momento. Ali, eu sou mais daqui.
Os grandes muros brancos esperam personagens. Os vértices dos muros são de pedras falantes - numa língua que já ninguém diz. A terra que ladeia os canteiros das árvores está viva e cheia de tesouros dos anos. As árvores não se importam com as fotografias e de tudo isto parecem troçar as cegonhas no seu firme bater de bico lá no topo da Sé.
Dizer que há uma magia indescritível na cidade velha, é demasiado pouco. Regresso frequentemente às ruas cujas pedras receberam pés, sangue, rodas de ferro, ranhos, sapatos e mãos. Ali, naquelas pedras, estão todos os que não constam da História. E outros, como o Remexido, e as tropas e as meninas engalanadas e os rapazes sonhadores, poetas e açougeiros, mercadores e parteiras, liberais, freiras, crianças vazias e velhos de olhos grandes. E o Zeca Afonso, o Carlos Porfírio, o Lyster Franco e a Matildinha "curiosa". E risos que se escondem. E a estátua de D.Afonso II que ainda manda na fé.
Regresso. Levo tripé. Ensaio distâncias focais, ajusto sensores: até onde eu quero ver a vida mais íntima das ruas velhas? Landscape (paisagem) ou portrait (retrato)? Acabo sempre por inverter, pois toda a paisagem na cidade velha é alta e magnânime, e toda a marca de tempo humano é um retrato com fuga para o passado e para o presente- Há uma disparidade luminosa constante na cidade velha: seduzem-me as exposições desequilibradas. Acho que algo fugiu há centenas de anos desta parte de Faro - e nem no futuro conseguiremos agarrar. Talvez a objectiva me leve lá. Ou quase.
ESPAÇO ALFA - Artigo de Conceição Agostinho publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul de abril de 2013
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